Cena 1 – Oliveira de
Barreiros, Portugal, meados de 1915: Angustiado,
o casal conversa sobre o futuro dos
filhos. Há pouco estavam no lagar, onde fabricam o bom vinho tinto que sustenta
a família. São tempos contraditórios: a Europa está ensanguentada e há o temor
da guerra iminente de Portugal contra a Alemanha; por outro lado, com a recente
demarcação do Dão como primeira região de vinho de mesa, os negócios correm bem,
as terras e os parreirais valorizaram. José e sua mulher, Anna de Jesus,
decidem: vão embarcar António, o filho primogênito, para o Brasil, antes de
completar 18 anos, idade de recrutamento para o temido serviço militar. “Em 9
de Março de 1916 a Declaração de Guerra da Alemanha a Portugal veio formalizar
um conflito que já havia começado há algum tempo entre Portugueses e Alemães. O
conflito luso-alemão já vinha sendo travado ......... no sul de Angola e norte
de Moçambique. Decidiu-se, então, a participação do Corpo Expedicionário
Português nas trincheiras da Flandres.” (Extraído de
http://grandeguerra.blog.com/). “As
primeiras tropas portuguesas chegam a Brest, porto na Bretanha, onde
desembarcam, a 2/2/1917 e a 8 de fevereiro concentram-se na Flandres Francesa.
Em março de 1918 as tropas portuguesas sofrem pesadas baixas nas trincheiras do
Somme.” (Extraído do Portal da História de Portugal). Mas meu pai, António
Lopes Corrêa, já chegara ao Rio no início de 1916, na terceira classe de um
navio, evitando, como muitos outros europeus, as trincheiras enlameadas e
letais da I Guerra Mundial. Era um jovem camponês de família remediada,
pequenos proprietários radicados na povoação de Oliveira de Barreiros,
freguesia de São João de Lourosa, a seis quilômetros da Cidade de Viseu. Vinha
das terras férteis da Beira Alta, dominadas pelas neves eternas da Serra da Estrela e notáveis pelo delicioso
vinho que é produzido nas cercanias do Rio Dão. Completara três anos de
educação primária, era simpático, alto, bem apessoado, com grande capacidade de
adaptação e bastante determinado, como se exige de um imigrante. Desembarcado
na Praça Mauá, logo foi trabalhar como garçom na Lapa. Em 1922, selecionado para trabalhar na Feira de Amostras
– a Exposição Internacional, Comemorativa do Centenário da Independência, onde
as gorjetas eram fartas e em moeda forte - ganhou o dinheiro necessário para abrir
seu primeiro negócio. Uma ascensão rápida, mesmo para um jovem talentoso. A
essas alturas já estava totalmente assimilado pelos trópicos: torcia pelo
Flamengo, se esbaldava nos folguedos carnavalescos dos Tenentes do Diabo e adorava a boemia carioca. Antes
de chegar a Ipanema, onde ficaria para sempre, ainda passou uns tempos por Juiz
de Fora e rapidamente por São Paulo. Em 1931/32 montou o Café e Bar Ipanema, em
frente à Praça General Osório, na Rua Visconde de Pirajá 114, esquina com a Rua
Teixeira de Melo. Teve sucesso e muitas alegrias. Cimentou o caminho para que o
irmão César e as irmãs Rosa e Maria dos Prazeres viessem para o Brasil onde também
se radicaram, constituíram família e viveram muito bem.
Meu pai conseguiu, 100 anos antes, o que sírios, curdos e
iraquianos tentam agora, ao se lançarem de qualquer jeito nas águas do
Mediterrâneo: escapar das atrocidades da guerra.
Cena 2 – Fonte Arcada,
Portugal, 1929: Corria a Grande Depressão e meus avós
maternos, António de Castro e Rosa de Jesus, pequenos proprietários rurais
empobrecidos, fizeram um enorme esforço para conseguir o dinheiro com o qual minha
mãe, Maria do Céu, uma de suas sete filhas, partiu de navio para o Brasil, em
1929. A terra natal, Fonte Arcada, era uma freguesia produtora de bom azeite,
com intermináveis castanhais, que alimentavam os enormes porcos transformados
em produtos maravilhosos após a matança anual de outono. A aldeia, encravada
nas montanhas pedregosas da Beira Alta, tinha mais de mil anos de história e
pertencera à família de Inês de Castro (aquela que depois de morta foi
rainha...) mas após a queda da Monarquia
ficara decadente. Minha mãe, mesmo descendendo da nobre família Castro, teve
poucas oportunidades e concluíra apenas dois anos de escolaridade, apesar de
muito inteligente e dos apelos do professor da aldeia, impressionado pela sua facilidade
para aprender. Seu destino seria a enxada, o trabalho pesado, mas seus pais
apostaram no seu sucesso e a mandaram para o Brasil assim que puderam. Depositavam
muita confiança naquela jovem que tudo parecia saber. Ainda não chegara aos 18
anos mas já cozinhava bem, fazia os embutidos para o inverno, sabia colher,
fiar e tecer o linho, do qual fabricava belas colchas e toalhas. Dominava o
bordado, o tricô e o crochê. Estava preparada para enfrentar a dura vida do
imigrante e esperançosa de subir na vida e ajudar sua família. Fugia da fome e
da miséria iminentes. Extremamente trabalhadora, corajosa, com uma vontade
férrea e um gênio fortíssimo, ao chegar ao Rio foi empregada doméstica em casas
ricas da Zona Sul. Costumava mencionar seu trabalho na linda mansão da Avenida
Atlântica, esquina com a Rua Figueiredo Magalhães, cujo dono era um político, Presidente
do Banco do Brasil, James Darcy. Poupadora
compulsiva, logo reuniu economias para montar sua primeira pensão em meados da
década dos 30 – em Ipanema, na Rua Teixeira de Melo. O estabelecimento ficava em cima de uma leiteria (do Carlos,
também português), no quarteirão da praia, do lado par da rua e em frente ao
terreno do futuro Colégio Mello e Souza feminino. Empreendedora, teve sucesso e ficou para
sempre em Ipanema. Assim que possível, trouxe as irmãs Julieta e Izabel, mais o
sobrinho Amílcar, que se radicaram no Brasil, onde formaram família.
Chegando ao Brasil livre e desembaraçada minha mãe conseguia
o que tentam os pobres africanos que enfrentam o mar em botes inviáveis: fugir dos
horrores da miséria e da fome.
As duas histórias
convergem e se encontram em Ipanema, Rio de Janeiro:
Empresários na mesma rua, António e Maria, os jovens
portugueses – ambos vindos do Distrito de Viseu - acabaram se encontrando,
certa manhã, na Praça General Osório. E muito longe da “terrinha” se amaram,
namoraram e casaram. Ao filho único, proporcionaram um lar bem estruturado,
educando-o para ser genuinamente brasileiro. Mais do que isso, transmitiram-lhe
a “cultura do trabalho”, proporcionaram-lhe os melhores colégios e todos os
confortos da classe média ascendente que predominava em Ipanema. Sempre pregando
amor à jovem pátria, que consideravam também a deles, agradecidos eternos à
acolhida e às oportunidades de sucesso. Pois nada teria acontecido se o Brasil
não lhes abrisse, generosamente, as fronteiras.
António e Maria não eram exceções. Entre 1881 e 1930,
entraram no Brasil cerca de 3,9 milhões de estrangeiros, a maioria vinda da
Europa. Ipanema, em seus primórdios, era essencialmente um bairro de
imigrantes, o que explica seu caráter visceralmente cosmopolita e talvez o sucesso
internacional de muitos de seus moradores. O bairro serviu de interface
pioneira com as inovações sociais e culturais que chegavam do exterior. Em Ipanema
havia uma maioria de portugueses, mas também numerosos árabes (sírios e
libaneses), judeus da Europa Central e Oriental, italianos, alemães,
austríacos, franceses, japoneses e espanhóis. Ali viviam também uns poucos
ingleses, os quais formavam uma classe à parte, da elite colonial, composta
pelos executivos da Light and Power, do Moinho Inglês (Rio de Janeiro Flour
Mills and Granaries), da Telefônica. E, naturalmente, havia os brasileiros: da
classe rica ou média ascendente e alguns funcionários públicos federais do alto
escalão, todos à busca de sossego e de uma vida de praia, no bairro distante. Os
imigrantes de várias procedências conviviam intensamente entre si, em paz. Eram
todos amigos solidários, apesar da eclosão da II Guerra Mundial, inaugurando
uma tradição de tolerância mútua que no Brasil geralmente teima em ignorar os
conflitos internacionais. Naquela manhã da rendição nazista, em 8 de maio de
1945, a qual resultou no fim da II Guerra Mundial na Europa, Ipanema inteira
acordou às seis horas, com os rádios aos berros, tocando a Marselhesa e todos
indistintamente comemoraram. Pois não era a vitória deste ou daquele país e sim
a volta da esperada Paz, o despertar de um pesadelo, o fim dos racionamentos,
do gasogênio e daqueles tecidos negros horríveis com os quais, todas as noites,
cobríamos nossas janelas que davam para o mar, para que o inimigo não visse
nossas luzes - seus alvos jamais atingidos.
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Depois que fui trabalhar no MOBRAL, em 1972, não me sobrava
muito tempo para o lazer e eu me tornara
um “atleta de fim de semana”, jogando minhas duplas de voleibol de praia em
Ipanema, na Montenegro, muitas vezes sob o sol de meio dia aos 40 graus
centígrados. Prática arriscada segundo os cardiologistas. Lamartine Pereira da
Costa, especialista altamente qualificado na área de treinamento esportivo, que
trabalhava comigo no MOBRAL, sabia disso e brincou certa vez dizendo que eu ia
morrer na praia, jogando voleibol. Respondi de imediato que seria uma morte
gloriosa: na praia de Ipanema – onde nasci - praticando um esporte que amo,
seria um prêmio final para uma vida muito feliz.
Inaceitável, porém, seria morrer afogado como o menininho
sírio, a poucos metros da praia, barrado pela falta de compaixão, de
solidariedade, de amor ao próximo.
Eu nem teria nascido se meus pais não pudessem desembarcar
em paz na Praça Mauá, acolhidos sem reservas para reiniciar suas vidas e ajudar
a construir o Brasil.
A Europa não pode esquecer que de 1872 (ano do nosso primeiro
censo demográfico) até o ano 2000, só no Brasil entraram 6 milhões de imigrantes, a maioria
proveniente da Europa.
A Europa não pode ficar indiferente ao corpinho inerme do pequeno
mártir sírio, cujo silêncio eterno ecoa como um grito de socorro que não pode
deixar de ser ouvido...