No Brasil há milhões de crianças e adolescentes como o
filipino Daniel, sem condições mínimas para permitir-lhes uma trajetória escolar
normal. Caso tais problemas não sejam ultrapassados, esses brasileirinhos continuarão
a engrossar futuramente as fileiras do analfabetismo funcional ou serão aqueles
trabalhadores incapazes de fazer cálculos rudimentares ou de ler e entender uma folha de instruções simples,
impossibilitados por isso de acompanhar
os cursos de qualificação profissional que lhes são ofertados.
Mas agora surge uma esperança pois dentre as várias ideias
interessantes contidas no documento PÁTRIA EDUCADORA, de autoria da SAE
(Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República), está a
proposta de um tratamento especial a ser dispensado aos alunos carentes desde o
início de sua vida escolar, de modo a dotá-los
das capacitações porventura faltantes, que por isso inibem seu sucesso
nos estudos.
Já trabalhei anteriormente sobre esse tema, o qual sempre
foi – desde os meus tempos de IPEA - uma preocupação, quando se objetiva democratizar oportunidades por meio da
educação. Há 50 anos eu já citava um
trabalho lapidar de Alfred Sauvy, mostrando as diferenças de aproveitamento
escolar, em 1944, dos estudantes franceses das primeiras séries, agrupados
segundo a profissão dos pais - um forte indicador de classe socieconômica. Logo no ingresso no ensino formal constatava-se
uma grande diferença de rendimento, por exemplo, entre os grupos situados nos
extremos superior e inferior – respectivamente filhos de profissionais liberais
e filhos de camponeses - o mesmo ocorrendo em menor escala com os estratos
intermediários (filhos de trabalhadores em serviços, filhos de operários da
indústria etc). Nas séries seguintes, à medida que a ação da escola se fazia
sentir sobre os estudantes, essas diferenças de performance entre grupos
iam se reduzindo. Depois de alguns anos de exposição à boa educação já
não havia distinções segundo o grupo, prevalecendo apenas as diferenças
individuais. Uma prova contundente do papel democratizante da escola... de
qualidade! Algo que ainda não temos para todos os brasileiros...
A educação é assim um direito humano que amplia a capacidade
de todas as pessoas se realizarem integralmente, em todas as dimensões. E educação se
faz por meio da intervenção em dois domínios: 1. o domínio educacional
propriamente dito, mais restrito, que se concretiza no chamado “âmbito
pedagógico”; 2. os domínios econômico, cultural e social, bastante amplos, que são os determinantes de caráter
estrutural. Dentre as causas das desigualdades de oportunidades educativas estão
certamente as condições em que as
pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem – são os “determinantes
sociais da educação”. A expectativa de vida escolar está altamente
correlacionada com essas condições. Não bastam o acesso e a permanência na
escola. Mais importante é o aproveitamento que se fará do processo educativo.
É preciso, portanto,
“abrir uma janela mais ampla de oportunidades” para a população
desfavorecida e desse modo permitir que todos, independentemente das condições
de vida, atinjam níveis educacionais além de um mínimo aceitável. A rigor, a
escola brasileira atual não consegue “abrir essa janela de oportunidades”, pois
não tem estrutura, tempo nem pessoal para fazê-lo. Certos obstáculos já foram
removidos, ao longo do tempo: a distribuição gratuita de material didático,
alimentação escolar, transporte e uniformes anula alguns dos fatores negativos
mencionados. Mas é preciso dar outros passos mais ousados e o que denomino de
Professor de Família – explorando a analogia com o já consagrado Médico de
Família - seria um instrumento fortemente democratizante.
Medidas clássicas de aperfeiçoamento da qualidade do
processo educacional são o aumento da carga horária, a redução do tamanho das
turmas, a ampliação do número de
professores e pessoal de apoio. A
introdução da figura do Professor de Família teria como efeito a combinação
sintética de todas essas medidas citadas, aliada à ação comunitária inerente à
sua intervenção no domicílio das famílias beneficiadas.
Os problemas quantitativos de nosso setor educacional estão
sendo gradativamente resolvidos, inclusive pelo fato de a evolução demográfica
brasileira ser altamente favorável – crescimento populacional reduzido e
contingentes cada vez menores nas faixas etárias compreendendo a infância e a
adolescência. Os investimentos no setor educacional já são elevados e as novas
tecnologias de informação e comunicação (TIC) facilitam em muito o trabalho
pedagógico e a motivação do alunado, assim como o atingimento dos locais mais
remotos de nosso vasto território. Todavia, essa receita tradicional,
plenamente de acordo com os cânones internacionais e seguida nos diversos
países, não está funcionando em velocidade compatível com o dinamismo da nossa
sociedade: a qualidade de ensino
permanece decepcionante. A pontuação obtida pelos estudantes brasileiros no
teste PISA, realizado pela OCDE e envolvendo dezenas de países, é cronicamente
desfavorável: estamos sempre entre os últimos colocados. Mas como enfrentar
esse desafio? É bom repetir: as medidas ortodoxas, adotadas em outros países ao
longo das últimas décadas – e que estão sendo seguidas em nosso País – talvez
não possam, por si só, com a presteza desejada,
resolver o problema brasileiro, cheio de especificidades culturais que
têm grande influência no sucesso de programas de massa como são os
educacionais. É claro que o
funcionamento pleno de um sistema de educação continuada, aberto a todos os
brasileiros, e a adoção maciça das novas tecnologias de ensino (TIC), para
todas as classes populacionais, são medidas consagradas, certamente adequadas e
devem ter sua continuidade assegurada. Só
que é preciso algo mais... Até porque, sendo objetivo permanente implantar a
educação continuada – o que deve acontecer em todos os lugares, para todos,
durante toda vida – o domicílio deve passar a ser pensado como um espaço
privilegiado do processo e a família, mais especificamente, deve ser vista como
importante sujeito/objeto desse processo - o que é praticamente impossível no
caso da coexistência com a miséria.
Um programa dessa magnitude necessita de recursos e o
momento não é favorável. Mas há um caminho gradual e que permite maximizar os
resultados positivos almejados. Iniciar o atendimento pelos participantes do
Programa Bolsa Família (PBF), o qual abrange exatamente as famílias a que pertencem
majoritariamente esses alunos sem apoio adequado em seus lares. O PBF é o
veículo mais adequado para ajudar esses estudantes enquanto a escola brasileira
não preencher os padrões de qualidade desejáveis.
A proposta é que no âmbito do Programa Brasil Sem Miséria se
institua a figura do “Professor de Família”, um Agente de Desenvolvimento Humano
que intervirá nos lares dos mais necessitados, vivendo na pobreza absoluta, e que
atuará sobre todos os seus membros – crianças, adolescentes, adultos e idosos –
principalmente (mas não exclusivamente) orientando-os sobre as políticas
públicas e os caminhos da educação continuada disponíveis local ou regionalmente,
para superar as barreiras da falta de conhecimento. Assistência domiciliar que
dará, aos que já estão no sistema educacional, especialmente no ensino
fundamental, um suporte importante para a realização dos trabalhos escolares,
apoio que esse aluno geralmente não pode encontrar no seio da sua família - ela
também carente no que concerne à escolaridade. Um esforço complementar,
pioneiro e inovador, que o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) iria
aportar ao sistema educacional brasileiro em sua difícil luta em favor da
qualidade de ensino!
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