Em 29/10/2014, convidado pela filial de Buenos Aires do Instituto Internacional de
Planejamento da Educação (IIPE) da UNESCO, participei como ouvinte do debate ao
vivo na internet, organizado pela RedEtis, sobre o tema “Transição da Escola
para o Trabalho” ("Los puentes entre la escuela y el trabajo: variaciones
en clave latinoamericana”). Infelizmente, entre os debatedores não havia um
brasileiro e nossa realidade ficou de fora.
Essa questão sempre foi relevante, mas atualmente está na
ordem do dia, especialmente em função de um fenômeno que aflige a maioria dos
países, incluindo o Brasil: as elevadas taxas de desemprego que atingem as camadas
mais jovens da população. Trata-se, em sua maioria, daqueles recentemente
diplomados ou evadidos, embora haja também o caso dos que saíram da escola há mais tempo
e ainda não conseguiram uma ocupação. Estes últimos, aliás, têm maior probabilidade
de engrossar a multidão dos jovens que não estudam nem trabalham, correndo elevado
risco de desalento, de desvios de conduta e sofrendo uma constelação de outros
problemas que as sociedades gostariam de evitar.
As deficiências de articulação e passagem entre os sistemas
de educação e o mercado de trabalho não são novas e existem desde sempre, embora
teoricamente quase todos os países já disponham do tipo de mecanismos adequados
para resolver o problema, os quais todavia não funcionam corretamente ou são
insuficientes para atender à demanda potencial existente. Em geral, o maior obstáculo
a vencer é a falta de coordenação entre as instituições públicas envolvidas, as
quais pertencem a Ministérios e Secretarias distintas: Educação e Trabalho.
No caso do ensino superior, a situação é amenizada tanto pela
existência de organizações que fazem a integração entre as empresas e as
universidades, quanto pelo grande número de oportunidades oferecidas nos
programas empresariais de “trainees” e ainda pelas iniciativas das próprias
representações acadêmicas dos estudantes, pela multiplicação das incubadoras
que fomentam o empreendedorismo dos jovens e até pelo fato de que a opção
individual por uma certa carreira - já feita anteriormente - cria um foco, um objetivo mais claro a perseguir.
O problema da transição penosa prejudica principalmente os
alunos da educação básica, que concluem os estudos do ensino fundamental ou do
ensino médio, sendo ainda mais grave para os que se evadem do sistema no decorrer
de um desses cursos. Até hoje, no Brasil, os jovens que deixam os estudos e almejam
de imediato uma ocupação são, em sua maioria esmagadora, tomados pela
perplexidade ante a enorme gama de possibilidades – e dúvidas – quanto ao seu
futuro. Qual a carreira profissional a seguir? Qual o caminho para chegar lá?
Quais os requisitos? Há necessidade de um curso adicional de qualificação
profissional ou de Línguas? Informática? Onde?
Infelizmente, a escola - na qual os estudantes estiveram
durante um ou mais anos letivos - geralmente não lhes dá qualquer orientação, o que seria mais lógico
já que essa instituição, pela convivência, deve bem conhecer suas aptidões e
competências. Há exceções, é claro, mas são poucos os estabelecimentos de
ensino que mesmo ao fim do curso médio e principalmente na conclusão do ensino
fundamental, colocam serviços de orientação e encaminhamento profissional à
disposição de seus alunos. Com os
estudantes que se evadem ao longo de sua trajetória discente, aliás necessitados
de maior assistência, ocorre o mesmo: a omissão e indiferença da escola quanto
ao seu futuro profissional.
Há 60 anos fiz o curso científico (atual ensino médio) no
Colégio Mello e Souza e lá fui testado e recebi aconselhamento ocupacional do ISOP
(Instituto de Seleção e Orientação Profissional), dirigido pelo pioneiro Professor
Mira y López. Deu Engenharia “na cabeça” e lá fui eu para o Largo de São
Francisco, confiante no futuro. Há 60 anos... privilégio de uma parcela ínfima
da população que frequentava escolas particulares de qualidade.
Note-se que naqueles tempos as coisas eram bem mais simples,
inclusive porque havia um número reduzido de opções profissionais –
principalmente no ensino superior. Com o tempo, porém, a economia
diversificou-se, tornou-se muito mais complexa e o número de ocupações não parou
de multiplicar-se. Na Classificação
Brasileira de Ocupações (CBO) de 1994 elas eram 2.356, mas na grande revisão
mais recente, na CBO 2002, as ocupações aumentaram para 2.422 e a cada ano são
feitos acréscimos relevantes.
As soluções racionais e adequadas para inclusão profissional
– especialmente para a primeira ocupação - ainda inexistem para muitos
brasileiros. Embora tenhamos progredido gradualmente, falta um
longo caminho a percorrer. As medidas a adotar, para facilitar essa passagem
tranquila do estudo para o trabalho, são teoricamente viáveis, pois já se
dispõe no Brasil das estruturas públicas básicas que permitiriam sua
operacionalização e universalização.
O encaminhamento da solução sugeriria:
·
Dinamização, no Brasil, da educação continuada
em todos os níveis, accessível e universalizada, de modo a possibilitar a
elevação do perfil de educação geral da população e sua qualificação
profissional crescente e diversificada. A educação permanente, adequadamente
estruturada, facilita a volta do trabalhador ao ensino geral ou
profissionalizante, à busca de crescimento, em qualquer momento de sua vida
ativa, assim como, no sentido inverso, possibilita o reingresso do
estudante/treinando no mercado de trabalho, em situação mais favorável. Essa
permeabilidade favorece a ascensão pessoal contínua, baseada no mérito,
trazendo ganhos econômicos e sociais para os setores produtivos e a sociedade
como um todo.
·
A operacionalização da educação continuada
depende da íntima articulação entre o sistema educativo e o sistema nacional de
emprego (SINE), mantido em convênios dos Estados e Municípios de maior porte (mais
de 200 mil habitantes) com o Ministério do Trabalho. A rede do SINE era
composta de cerca de 1.600 unidades já em 2012, cobrindo as áreas mais
populosas do país. As escolas básicas deveriam incorporar, nas atividades de
seus alunos das séries terminais, o contato com a cultura do trabalho, para
isso estabelecendo vínculos estreitos com associações de classe e
principalmente com as agências públicas de emprego de suas vizinhanças. Estas,
por seu turno, além de manter ativa sua função básica de intermediação de mão
de obra, ou seja, colocação de candidatos no mercado de trabalho, intensificariam suas capacidades de
aconselhamento e orientação profissional, de modo a atender os estudantes dos
estabelecimentos educacionais de sua área de influência. O encaminhamento de
graduandos às agências de emprego, em busca de colocação no mercado de trabalho
ou de alocação à educação profissional, deve tornar-se uma atividade de rotina
das escolas.
Casos Especiais:
·
Jovens estudantes das famílias participantes do
Programa Bolsa Família deveriam receber especial atenção da escola, na
transição do estudo para o trabalho, uma vez que geralmente não dispõem, no
lar, do suporte para buscar um encaminhamento adequado. Além disso, como o
responsável pelo núcleo familiar, em sua maioria, não pertence à população economicamente ativa,
esse jovem necessita de um maior contato com a cultura do trabalho e precisa
como ninguém obter uma ocupação, inclusive para adquirir autonomia e tirar sua
família da dependência ao programa de transferência de renda. Caso a geração
seguinte repita a condição de dependência dos pais ao programa BF, o Brasil corre
o risco de ver diminuir o número de pobres (pois recebem o BF) mas aumentar o de miseráveis (jovens que não trabalham e constituem novas famílias). Um resultado
oposto ao que se deseja.
·
Programas de integração entre escola e empresa,
entre estudo e trabalho/treinamento, como é o caso do Menor Aprendiz, do Pro-Jovem e outros
similares, obviamente facilitam a transição pretendida.
·
Com a legislação que prevê percentuais mínimos
de trabalhadores deficientes em empresas de maior porte, criou-se uma demanda, ainda
não atendida, de pessoal qualificado com
essas características especiais. Empresários afirmam não ter como atender à lei por falta de trabalhadores deficientes com as competências e habilitações necessárias. Estudantes nessa condição especial devem receber
prioridade de suas escolas no encaminhamento às agências públicas de emprego.
No evento de que participei, debatedores e demais
participantes eram principalmente educadores, certamente escolhidos por seu
prestígio e mérito profissional. Fiquei chocado ao constatar que afora as
exceções de praxe, os educadores autolimitam suas áreas de interesse, isolam-se
em seu universo particular, muito sedutor e absorvente, entregando-se a ele de
corpo e alma. Essa devoção admirável, porém, pode padecer de um vício de
origem: a aversão à multidisciplinaridade. É difícil gostar daquilo que se
desconhece. Esse isolacionismo dos educadores merece uma crítica clara e eloquente,
pois está na raiz de muitos dos problemas que a educação enfrenta mundo afora.
Não há autossuficiência na pedagogia, assim como não a há em qualquer campo do
conhecimento humano, uma vez que o mundo real é muito complexo. Problemas e
principalmente suas soluções são sempre multifacetadas, exigem enfoque
multidisciplinar e contributos de natureza diversa. Muitos educadores acham que
a educação deve ser seu monopólio e não admitem interferências de outros
profissionais. Essa minha observação vem a propósito do fato de ter constatado
no debate – abrangendo centenas de ouvintes – que a maioria esmagadora dos
participantes parecia ignorar que todos os países latino-americanos dispõem de
sistemas públicos de emprego ativos (e caros), abertos a toda população, dentre
outros objetivos visando o aconselhamento vocacional, a orientação
profissional, o encaminhamento para os circuitos de educação continuada, a
captação de vagas e a colocação de mão de obra no mercado laboral. Sendo o tema
discutido a passagem do estudo ao trabalho, a articulação entre os sistemas
educativos e os sistemas de emprego seria o passo básico, o mais importante, do
processo de transição. Uma coordenação imprescindível e olvidada por quase
todos participantes.
Fiquei lamentando o fato de que muitos educadores
brasileiros provavelmente ignoram a existência do SINE, o Sistema Nacional de
Emprego, com suas 1.600 agências de emprego espalhadas pelo Brasil, as quais
deveriam ter uma ligação íntima com as escolas básicas.
Mas como culpá-los, se a própria Presidente da República
desconhece o SINE? No último debate
antes das eleições, desastrosamente, Dilma recomendou que uma
participante desejosa de um emprego procurasse o SENAC – órgão de treinamento da
Confederação Nacional do Comércio – esquecendo tratar-se de função precípua do desprezado SINE, do seu (???)
Ministério do Trabalho.
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