Os programas de aferição da qualidade do setor educacional
devem servir, também, para mostrar os caminhos mais curtos para resolver os problemas observados.
De modo geral, esse tipo de instrumento cria grandes oportunidades de
aperfeiçoamento do sistema - que podem ou não ser aproveitadas.
Um exemplo histórico é ilustrativo: a partir dos anos 40,
Mário Augusto Teixeira de Freitas, um dos criadores do IBGE, realizou trabalhos
pioneiros, utilizando indicadores de qualidade inferidos de estatísticas
relativas ao fluxo dos alunos no ensino primário brasileiro. Em sua análise de
evasão escolar, alertou às
autoridades “que os índices reproduzem situação de extrema severidade que
atesta o fracasso da obra do governo em sua missão educativa”. E concluía afirmando que o Brasil precisava
“não de mais escolas e sim de melhores escolas de ensino
fundamental”. Advertências que deveriam ter sido consideradas nas políticas públicas
de então. À época, a educação brasileira
ignorava seus números, voltada que estava, prioritariamente, para a filosofia
pedagógica e a psicologia do aprendizado. O diagnóstico de Teixeira de Freitas – bem
fundamentado e pertinente - caiu no esquecimento. Os estudos quantitativos não
prosperaram e nossa educação primária
pública continuou deteriorando. Oportunidade perdida!
Anos mais tarde, em 1965, com a criação do EPEA pelo
Ministro Roberto Campos, seu Setor de Educação e Mão de Obra (depois
transformado em CNRH - Centro Nacional de Recursos Humanos) retomou a
utilização intensiva das informações do desprezado SEEC (órgão do MEC
encarregado das estatísticas do sistema), calculando e analisando índices de
escolarização, reprovação, repetência, evasão, distorção série-idade, ingresso
tardio na escola, absenteísmo e realizando
estudos de fluxo escolar, empenhando-se no esforço de aferir a qualidade
do sistema educacional brasileiro. Ensaios refinados, realizados com a
assistência técnica do belga Jacques Torfs, competente e dedicado perito da
UNESCO, lançaram luz sobre um grave problema que hibernava até então, ignorado
pelas autoridades de nossa educação: as elevadíssimas taxas de reprovação - e consequentemente de repetência - no primeiro ano do ensino
primário faziam com que nessa série se acumulassem estudantes de vários grupos
etários (com 7, 8, 9 etc até 14 anos de
idade), que não eram alfabetizados e a repetiam
múltiplas vezes. Essa distorção série-idade acarretava gigantesco congestionamento na entrada do sistema
e impedia o acesso de grande parcela das
crianças das gerações seguintes, quando chegavam à idade de escolarização obrigatória. A falta de vagas
decorria primordialmente da má qualidade do atendimento na fase de
alfabetização e o Brasil construía escolas de certa forma desnecessárias, pois se as taxas de
reprovação e repetência diminuíssem, seria possível, com o mesmo número de
matrículas, atender a uma quantidade
significativamente maior de crianças. Não faltavam propriamente vagas e
sim que o fluxo dos estudantes fosse normalizado, acelerado por
meio de melhor qualidade de ensino, que se adaptasse às características dos
alunos e reprovasse menos. A escola teria que responder às novas realidades
de um país que se urbanizava rapidamente e cujos estudantes provinham agora, em
sua maioria, de famílias carentes e tinham grandes dificuldades no primeiro contato com a escola e no aprendizado inicial da leitura, escrita e cálculo.
Esse achado foi um ponto de inflexão na política
educacional. Em face desse diagnóstico, tiveram início as discussões sobre a implantação da promoção
automática e semiautomática no ensino primário, as quais dariam, para os alunos
carentes, maior tempo de adaptação à vida escolar e aumentariam suas
probabilidades de sucesso acadêmico. O CNRH (Centro Nacional de Recursos
Humanos) do EPEA realizou simulações matemáticas (teoria das filas) sobre esses tipos de promoção, ressaltando o
impacto positivo de sua adoção. Com o tempo, foram surgindo iniciativas que
consideravam esse novo enfoque. Resultado mais concreto e imediato desses
estudos de fluxo escolar foi observado na formulação das políticas públicas em
que o CNRH tinha grande liderança: a partir daí, deu-se a expansão maciça dos programas de
alimentação escolar, de distribuição gratuita de livros texto e material
pedagógico de uso dos alunos, beneficiando os estudantes carentes. Na mesma
linha, procedeu-se, em 1966, à implantação do PEBE - Programa de Bolsas de
Estudos integrais para filhos de trabalhadores sindicalizados, facilitando seu
ingresso no ensino ginasial, até então muito seletivo já que predominantemente
privado e pago. Para tornar viáveis esses programas, houve grande aumento de recursos para o setor,
possível a partir da promulgação da Lei do Salário Educação, pelo Presidente
Castello Branco.
No caso citado, a aferição de qualidade pelo EPEA, com a
cooperação da UNESCO, identificou problemas e respectivas soluções, resultando concretamente
na maior equidade de oportunidades e na melhoria da performance do sistema de
ensino. Mas os ouvidos moucos para o brado de Teixeira de Freitas haviam atrasado
essas medidas em mais de 20 anos!
O CENTRALISMO DO MEC
Quando se afirma que a educação brasileira é deficiente, tal
assertiva se baseia na aferição de sua qualidade por meio de alguma(s) das
muitas metodologias disponíveis.
A partir dos anos 90 o Brasil foi criando instrumentos
governamentais de controle de qualidade do sistema educacional, surgidos a partir de uma visão mais
centralizadora. O controle de qualidade
individual, na ponta do processo, de responsabilidade do professor, foi sendo
gradualmente relegado a plano secundário, embora ainda sirva para decisões a
nível de aluno, turma e unidade escolar. Critica-se o intervencionismo federal
nesse campo, a magnitude financeira e pedagógica que assumiu a respectiva
parafernália e a importância talvez excessiva que passou a ter na vida futura
dos estudantes, gestores escolares e estabelecimentos de ensino. Será que esses
instrumentos têm realmente a precisão que lhes permita intervir tão
profundamente? Além dessa pergunta onipresente,
contribuíram para essa crítica mais dura os inúmeros erros de execução do ENEM
à época do Ministério Fernando Haddad, seus custos elevados e sua extrema
vulnerabilidade à fraude, que pode prejudicar milhões de alunos brasileiros por
ele avaliados.
· Consultando os portais do MEC e INEP na internet, lá estão
descritos os principais instrumentos de controle de qualidade coordenados
centralmente, pelo Governo Federal, a
saber: o ENEM, o ENADE, a Prova Brasil e
o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), o IDEB. O ENEM é o
mais notório deles e merece análise específica, pelas suas potencialidades.
O Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM) criado em 1998, com o objetivo inicial de avaliar o
desempenho do estudante ao fim da educação básica, passou a ser utilizado principalmente
como mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior, que foi gradualmente
eliminando os demais processos seletivos, próprios das IES. Explica-se: só os alunos que
fazem o Enem têm acesso a programas de bolsas de estudo e gratuidade oferecidos
pelo Governo Federal: o Programa Universidade para Todos – Pro Uni; o SISUTEC -
Sistema de Seleção Unificada da Educação Profissional e Tecnológica e o FIES - Fundo de Financiamento Estudantil.
Daí sua preponderância, eliminando os
vestibulares descentralizados.
· O POTENCIAL DO ENEM
O papel do ENEM como instrumento de controle de qualidade do
sistema educacional perdeu-se no tempo, assumiu papel secundário. Hoje o ENEM é
um grande vestibular e um mecanismo de seleção de bolsistas do ensino superior.
Mas os dados disponíveis no programa, que atinge já 6 milhões de estudantes a
cada edição, são valiosos e isso interessa à melhoria da qualidade da educação brasileira.
O ENEM afere a qualidade do ensino testando seu “produto
final”- que é o estudante que concluiu a educação básica. A avaliação por meio
do produto final, isoladamente, não teria valor, mas seguir os resultados do ENEM ao longo do tempo permite saber se estamos melhorando ou
piorando, o que não é muito útil.
Mas o banco de dados do ENEM teria uma grande contribuição para
a melhoria qualitativa da educação básica, caso fosse utilizado com essa
intenção deliberada. Alguns poucos exemplos – dentre as muitas possibilidades
existentes - são eloquentes:
a)
É possível classificar as escolas utilizando os
resultados de seus alunos no ENEM. A cada ano o exame mostra quais são os
estabelecimentos cujos alunos tiveram em conjunto os melhores resultados. Da mesma forma, o ENEM identifica as unidades cujos alunos tiveram os
resultados coletivos mais fracos. O estudo detalhado das escolas de melhor
resultado, ao longo do tempo, utilizando metodologias científicas robustas,
certamente desvendaria os caminhos para a educação de qualidade. No outro
extremo, a análise criteriosa dos estabelecimentos de pior resultado, ao longo
do tempo, permitiria conhecer as deficiências que precisam ser prioritariamente
combatidas, para melhorar a qualidade de ensino. E o estudo comparativo entre as escolas dos dois extremos, provavelmente
permitiria conclusões ainda mais esclarecedoras. Análise fatorial, construção
de taxonomias, desenho de projetos experimentais etc são tarefas para cientistas
sociais e matemáticos de ponta. Algo
justificado pela importância do objetivo.
b)
O fator econômico é extremamente
importante, pois a escola pública que o
Brasil pode oferecer generalizadamente a sua população vai depender do custo
unitário do aluno atendido, de modo que os resultados das pesquisas descritas
em (a) têm que ser temperadas por considerações de níveis de prioridade, limite
de despesas públicas etc
c)
Alunos de ponta, com melhores resultados no
ENEM, devem ter suas trajetórias de vida escolar estudadas. O foco em alunos de ponta, provenientes de
escolas públicas, pode lançar luz sobre aspectos diferenciais das boas escolas
de responsabilidade dos municípios, estados e federais.
A pesquisa em educação tem papel relevante na melhoria da
qualidade do sistema. Há um longo e promissor campo de investigação a palmilhar
no Brasil. Basta o MEC ter vontade política.
Caro Arlindo: Não vejo interesse real por parte do governo em auferir qualquer dado mais concreto neste setor. Até onde sei/ acompanho, a ordem é: aprovar aluno independente de conhecimento. Houve também uma transformação ideológica na metodologia do ensino. Se antes havia “alunos”, hoje existem “clientes” e, desta forma, todo o processo educacional fica aquém de qualificação significativa. Assim sendo, a ponta deste iceberg, despeja no mercado de trabalho, cada vez mais, formandos com conhecimentos rudimentares devido a pressa em aprovar e fazer jus a demanda de um mercado cada vez mais veloz e raso .
ResponderExcluirForte abraço,
Jr
Caro Junior: obrigado pelo comentário. Realmente, estamos formando pessoas com grandes dificuldades para se inserirem no mercado de trabalho, em virtude da educação de má qualidade recebida, especialmente nas escolas públicas. O Governo Federal está investindo grandes somas na qualificação profissional por meio do PRONATEC, visando recuperar o apagão de mão de obra ocorrido nos últimos 10 anos. Mas a péssima educação básica dos treinandos dificulta a absorção dos conteúdos. Arlindo
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