segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

CONTROLE DE QUALIDADE E PESQUISA EDUCACIONAL

Os programas de aferição da qualidade do setor educacional devem servir, também, para mostrar os caminhos mais curtos para  resolver os problemas observados. De modo geral, esse tipo de instrumento cria grandes oportunidades de aperfeiçoamento do sistema - que podem ou não ser aproveitadas.
Um exemplo histórico é ilustrativo: a partir dos anos 40, Mário Augusto Teixeira de Freitas, um dos criadores do IBGE, realizou trabalhos pioneiros, utilizando indicadores de qualidade inferidos de estatísticas relativas ao fluxo dos alunos no ensino primário brasileiro. Em sua análise de evasão escolar, alertou  às autoridades “que os índices reproduzem situação de extrema severidade que atesta o fracasso da obra do governo em sua missão educativa”.  E concluía afirmando que o Brasil precisava “não de mais escolas e sim de melhores escolas de ensino fundamental”. Advertências que deveriam ter sido consideradas nas políticas públicas de então. À época,  a educação brasileira ignorava seus números, voltada que estava, prioritariamente, para a filosofia pedagógica e a psicologia do aprendizado.  O diagnóstico de Teixeira de Freitas – bem fundamentado e pertinente - caiu no esquecimento. Os estudos quantitativos não prosperaram e nossa  educação primária pública continuou deteriorando.  Oportunidade perdida!
Anos mais tarde, em 1965, com a criação do EPEA pelo Ministro Roberto Campos, seu Setor de Educação e Mão de Obra (depois transformado em CNRH - Centro Nacional de Recursos Humanos) retomou a utilização intensiva das informações do desprezado SEEC (órgão do MEC encarregado das estatísticas do sistema), calculando e analisando índices de escolarização, reprovação, repetência, evasão, distorção série-idade, ingresso tardio na escola, absenteísmo e realizando  estudos de fluxo escolar, empenhando-se no esforço de aferir a qualidade do sistema educacional brasileiro. Ensaios refinados, realizados com a assistência técnica do belga Jacques Torfs, competente e dedicado perito da UNESCO, lançaram luz sobre um grave problema que hibernava até então, ignorado pelas autoridades de nossa educação: as elevadíssimas taxas de reprovação  - e consequentemente de  repetência - no primeiro ano do ensino primário faziam com que nessa série se acumulassem estudantes de vários grupos etários (com 7, 8, 9 etc  até 14 anos de idade), que não eram alfabetizados e a repetiam  múltiplas vezes. Essa distorção série-idade acarretava gigantesco   congestionamento na entrada do sistema e  impedia o acesso de grande parcela das crianças das gerações seguintes, quando chegavam à idade de  escolarização obrigatória. A falta de vagas decorria primordialmente da má qualidade do atendimento na fase de alfabetização e o Brasil construía escolas de certa forma   desnecessárias, pois se as taxas de reprovação e repetência diminuíssem, seria possível, com o mesmo número de matrículas, atender a uma quantidade  significativamente maior de crianças. Não faltavam propriamente vagas e sim que o fluxo dos estudantes fosse normalizado, acelerado por meio de melhor qualidade de ensino, que se adaptasse às características dos alunos e reprovasse menos. A escola teria que responder às novas realidades de um país que se urbanizava rapidamente e cujos estudantes provinham agora, em sua maioria, de famílias carentes e tinham grandes dificuldades no primeiro  contato  com a escola e no aprendizado inicial da  leitura, escrita e cálculo.
Esse achado foi um ponto de inflexão na política educacional. Em face desse diagnóstico, tiveram início as  discussões sobre a implantação da promoção automática e semiautomática no ensino primário, as quais dariam, para os alunos carentes, maior tempo de adaptação à vida escolar e aumentariam suas probabilidades de sucesso acadêmico. O CNRH (Centro Nacional de Recursos Humanos) do EPEA realizou simulações matemáticas (teoria das filas)  sobre esses tipos de promoção, ressaltando o impacto positivo de sua adoção. Com o tempo, foram surgindo iniciativas que consideravam esse novo enfoque. Resultado mais concreto e imediato desses estudos de fluxo escolar foi observado na formulação das políticas públicas em que o CNRH tinha grande liderança: a partir daí,  deu-se a expansão maciça dos programas de alimentação escolar, de distribuição gratuita de livros texto e material pedagógico de uso dos alunos, beneficiando os estudantes carentes. Na mesma linha, procedeu-se, em 1966, à implantação do PEBE - Programa de Bolsas de Estudos integrais para filhos de trabalhadores sindicalizados, facilitando seu ingresso no ensino ginasial, até então muito seletivo já que predominantemente privado e pago. Para tornar viáveis esses programas, houve grande  aumento de recursos para o setor, possível a partir da promulgação da Lei do Salário Educação, pelo Presidente Castello Branco.          
No caso citado, a aferição de qualidade pelo EPEA, com a cooperação da UNESCO, identificou problemas e respectivas soluções, resultando concretamente na maior equidade de oportunidades e na melhoria da performance do sistema de ensino. Mas os ouvidos moucos para o brado de Teixeira de Freitas haviam atrasado essas medidas em mais de 20 anos!
O CENTRALISMO DO MEC  
Quando se afirma que a educação brasileira é deficiente, tal assertiva se baseia na aferição de sua qualidade por meio de alguma(s) das muitas metodologias disponíveis. 
A partir dos anos 90 o Brasil foi criando instrumentos governamentais de controle de qualidade do sistema educacional,  surgidos a partir de uma visão mais centralizadora. O  controle de qualidade individual, na ponta do processo, de responsabilidade do professor, foi sendo gradualmente relegado a plano secundário, embora ainda sirva para decisões a nível de aluno, turma e unidade escolar. Critica-se o intervencionismo federal nesse campo, a magnitude financeira e pedagógica que assumiu a respectiva parafernália e a importância talvez excessiva que passou a ter na vida futura dos estudantes, gestores escolares e estabelecimentos de ensino. Será que esses instrumentos têm realmente a precisão que lhes permita intervir tão profundamente?  Além dessa pergunta onipresente, contribuíram para essa crítica mais dura os inúmeros erros de execução do ENEM à época do Ministério Fernando Haddad, seus custos elevados e sua extrema vulnerabilidade à fraude, que pode prejudicar milhões de alunos brasileiros por ele avaliados.
·         Consultando os portais do MEC e INEP na internet, lá estão descritos os principais instrumentos de controle de qualidade coordenados centralmente,  pelo Governo Federal, a saber:  o ENEM, o ENADE, a Prova Brasil e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), o IDEB. O ENEM é o mais notório deles e merece análise específica, pelas suas potencialidades.
O  Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) criado em 1998, com o objetivo inicial de avaliar o desempenho do estudante ao fim da educação básica, passou a ser utilizado principalmente como mecanismo de seleção para o ingresso no ensino superior, que foi gradualmente eliminando os demais processos seletivos, próprios das IES. Explica-se: só os alunos que fazem o Enem têm acesso a programas de bolsas de estudo e gratuidade oferecidos pelo Governo Federal: o Programa Universidade para Todos – Pro Uni; o SISUTEC - Sistema de Seleção Unificada da Educação Profissional e Tecnológica  e o FIES - Fundo de Financiamento Estudantil.  Daí sua preponderância, eliminando os vestibulares descentralizados. 

·        O POTENCIAL DO ENEM
O papel do ENEM como instrumento de controle de qualidade do sistema educacional perdeu-se no tempo, assumiu papel secundário. Hoje o ENEM é um grande vestibular e um mecanismo de seleção de bolsistas do ensino superior. Mas os dados disponíveis no programa, que atinge já 6 milhões de estudantes a cada edição, são valiosos e isso interessa à melhoria da qualidade da educação brasileira.
O ENEM afere a qualidade do ensino testando seu “produto final”-  que é o estudante que concluiu a educação básica. A avaliação por meio do produto final, isoladamente, não teria valor, mas seguir os resultados do ENEM ao longo do tempo permite saber se estamos melhorando ou piorando, o que não é muito útil.
Mas o banco de dados do ENEM teria uma grande contribuição para a melhoria qualitativa da educação básica, caso fosse utilizado com essa intenção deliberada. Alguns poucos exemplos – dentre as muitas possibilidades existentes - são eloquentes:
a)      É possível classificar as escolas utilizando os resultados de seus alunos no ENEM. A cada ano o exame mostra quais são os estabelecimentos cujos alunos tiveram em conjunto os melhores resultados. Da mesma forma, o ENEM identifica as unidades cujos alunos tiveram os resultados coletivos mais fracos. O estudo detalhado das escolas de melhor resultado, ao longo do tempo, utilizando metodologias científicas robustas, certamente desvendaria os caminhos para a educação de qualidade. No outro extremo, a análise criteriosa dos estabelecimentos de pior resultado, ao longo do tempo, permitiria conhecer as deficiências que precisam ser prioritariamente combatidas, para melhorar a qualidade de ensino. E o estudo comparativo  entre as escolas dos dois extremos, provavelmente permitiria conclusões ainda mais esclarecedoras. Análise fatorial, construção de taxonomias, desenho de projetos experimentais etc são tarefas para cientistas sociais e matemáticos de ponta.  Algo justificado pela importância do objetivo.
b)      O fator econômico é extremamente importante,  pois a escola pública que o Brasil pode oferecer generalizadamente a sua população vai depender do custo unitário do aluno atendido, de modo que os resultados das pesquisas descritas em (a) têm que ser temperadas por considerações de níveis de prioridade, limite de despesas públicas etc
c)       Alunos de ponta, com melhores resultados no ENEM, devem ter suas trajetórias de vida escolar estudadas. O  foco em alunos de ponta, provenientes de escolas públicas, pode lançar luz sobre aspectos diferenciais das boas escolas de responsabilidade dos municípios, estados e federais.

A pesquisa em educação tem papel relevante na melhoria da qualidade do sistema. Há um longo e promissor campo de investigação a palmilhar no Brasil. Basta o MEC ter vontade política.

2 comentários:

  1. Caro Arlindo: Não vejo interesse real por parte do governo em auferir qualquer dado mais concreto neste setor. Até onde sei/ acompanho, a ordem é: aprovar aluno independente de conhecimento. Houve também uma transformação ideológica na metodologia do ensino. Se antes havia “alunos”, hoje existem “clientes” e, desta forma, todo o processo educacional fica aquém de qualificação significativa. Assim sendo, a ponta deste iceberg, despeja no mercado de trabalho, cada vez mais, formandos com conhecimentos rudimentares devido a pressa em aprovar e fazer jus a demanda de um mercado cada vez mais veloz e raso .
    Forte abraço,
    Jr

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  2. Caro Junior: obrigado pelo comentário. Realmente, estamos formando pessoas com grandes dificuldades para se inserirem no mercado de trabalho, em virtude da educação de má qualidade recebida, especialmente nas escolas públicas. O Governo Federal está investindo grandes somas na qualificação profissional por meio do PRONATEC, visando recuperar o apagão de mão de obra ocorrido nos últimos 10 anos. Mas a péssima educação básica dos treinandos dificulta a absorção dos conteúdos. Arlindo

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